Acerca do perdão

Sumário

Walter Riso

O tema do perdão é árduo e complexo. Contudo, parece-me conveniente abordá-lo, não só pela importância do perdão nas condições de vida atual do planeta, mas sim por suas implicações terapêuticas em problemas nos quais a ira, o rancor e o ódio são determinantes. Por exemplo, abuso sexual, maus tratos psicológicos, violência familiar e psicopatia.

Perguntas difíceis de responder: Como é possível que algumas pessoas que foram violentadas em seu foro íntimo da maneira mais brutal e deplorável possam deixar de lado o eu maltratado e passar por cima do mais profundo ressentimento (eu acrescentaria, justificado) para chegar ao tranquilo vale do perdão, redimir o agressor e libertar a si mesmas?

É possível alcançar a conversão do afeto negativo que compromete tanto o ofendido quanto o ofensor? Existe algum processo mental de preparação para que o perdão surja, ou na realidade se trata, como afirmam alguns filósofos, de um ato gratuito e espontâneo? Trata-se de um fenômeno determinado pelo amor ou pela cognição? Posso perdoar só de querer?

O que não é perdoar

A resposta a essas perguntas ficará mais fácil se partirmos da negativa, ou seja: o que não é perdoar? Segundo Comte-Sponville e Jankélévich, podemos definir os seguintes “não perdoar”:

Perdoar não é absolver. Não implica apagar a falta como em um passe de mágica ou deixá-la de lado como se nada tivesse acontecido. O fato fica registrado na história, e, por essa razão, o passado sempre está vivo de alguma maneira na memória. A absolvição total e radical só existe na ilusão sobrenatural, na visão teológica e religiosa: “Eu o absolvo”. Quem tem o poder de desvanecer a falta?

Como consequência disso, perdoar não é esquecer. O perdão não é amnésia, entre outras coisas porque não seria adaptativo apagar o infrator de nossa base de dados e, por ingenuidade, colocar-se em risco de um novo ataque. A criança deve esquecer o rosto do abusador que persiste em seu afã destrutivo? Como esquecer o explorador e evitar que torne a me enganar? Um ponto adicional: se deixássemos de recordar, o que aconteceria com as vítimas? Deveríamos expulsar Auschwitz ou a Bósnia-Herzegovina de nossas lembranças e desrespeitar a memória dos imolados? Nenhuma vítima merece a indiferença. O silêncio, nesses casos, é cúmplice e um detrator da consciência moral necessária para assumir uma possibilidade diante do problema.

Perdoar não é outorgar clemência, porque não exercemos a função de juízes, pelo menos não na vida normal dos relacionamentos. Não somos ninguém para decidir o tipo de castigo ou a sua intensidade. É possível odiar sem agredir e castigar sem odiar, como fazem muitos educadores. Além de tudo, a clemência pode carregar implicitamente certa arrogância porque implica em se colocar acima do culpado. Na realidade, todo processo que leva ao perdão deve ficar livre de superioridade em relação ao que solicita o perdão. Se você acha que tem o dom de ser clemente e de decidir sobre as sanções deste mundo, precisa de ajuda profissional urgente.

Perdoar não é sentir compaixão. A compaixão o solidariza com a dor da vítima, é uma “virtude afetiva”, trata-se de sensibilidade, de solidariedade emocional ou de contágio, visto que a dor alheia nos toca ou se reflete por meio da nossa. A compaixão é um sentimento democrático, pois a identificação do sofrimento é mais intensa quando se realiza entre iguais. É difícil imaginar a dor de um famoso astro de Hollywood porque o motor de seu iate queimou, ou porque seu tapete persa de 200 mil dólares pegou fogo. Compaixão: compartilhar a dor. Talvez ajude a facilitar o processo do perdão, mas não basta para defini-lo.

Perdoar não é renunciar à justiça. Recordo o caso de uma mulher que descobriu que seu marido estava tentando enganá-la em um negócio sujo. Depois de meditar várias semanas, ela me disse: “Pensei bem e tomei uma decisão: eu o perdoo, mas vou me separar”. O ato de perdoar não implica que devemos renunciar a defender nossos direitos ou deixar de lutar pelo que acreditamos; trata-se de não entrar no jogo do ódio. Eu me pergunto, por exemplo, se o trabalho de Simon Wiesenthal (um judeu sobrevivente dos campos de concentração nazistas) de identificar e capturar criminosos de guerra pertencentes à SS era motivado mais pelo ódio que pela justiça. Aparentemente não, porque o ódio o teria matado muito antes de encontrar o primeiro homicida. E me pergunto também se o que move as perseverantes mães da Plaza de Mayo, estejamos ou não de acordo com elas, é ódio pelos golpistas ou a necessidade refletida, imperiosa e vital de recuperar os seus: justiça ou vingança? A primeira, com certeza. Em outras palavras: Não odiar não é deixar de combater, e sim enfrentar a situação de maneira serena.

Posso lutar ou me defender de meus inimigos sem odiá-los? Penso que sim. É disso que trata o perdão. Não é abdicar à justiça, e sim exercê-la sem rancor, sem ira, sem aberrações violentas: “Perdoo, mas exijo justiça”, não por rancor, e sim por princípio. Quando o papa João Paulo II foi até o presídio para encontrar o indivíduo que havia tentado assassiná-lo e lhe manifestou seu perdão, nunca tentou eximi-lo de sua sentença. Uma jovem mulher, profundamente apaixonada por um homem infiel, perguntou-me em certa ocasião: “Eu o amo, devo perdoá-lo?”. Minha resposta foi a seguinte, e nela me mantenho: “O amor não justifica a violação de sua dignidade pessoal. Ele lhe foi infiel em várias ocasiões comprovadas. Pergunte-se se isso é negociável para você ou não. Se for, perdoe-o, e continue com ele. Se não for, perdoe-o e deixe-o para sempre”.

O que é perdoar

Perdoar é não odiar, é extinguir o rancor e os desejos de vingança. É não permitir que o ressentimento continue deitando raízes. O psiquiatra cognitivo Beck define o ódio como um mecanismo mais intenso e profundo que a ira. Eu acrescentaria: mais personalizado. Mas vimos que há gente que pode odiar coisas inanimadas, como no caso do rei que quis secar o rio. O ódio é uma aversão essencial pelo outro acompanhado por forte e incontrolável desejo de destruir a pessoa. O outro é visto como um inimigo perigoso, maligno e cruel.

As condições do perdão

A maioria dos autores concorda que o perdão requer certas condições:

Somente a pessoa ofendida é que tem o direito de perdoar. Esse é o privilégio da vítima. O perdão é algo pessoal, nele só intervêm os envolvidos diretos. Não posso perdoar Hitler a distância, como um observador alheio à dor do Holocausto e sem ser um judeu prejudicado diretamente. Só o torturado pode perdoar o torturador, só o imolado pode perdoar seus algozes. Haverá maior presunção em quem acredita ter o poder de perdoar os assassinos de outro?

O perdão requer tempo. O perdão fácil é suspeito. Jankélévich afirma: “Essa urgência de confraternizar com os algozes, essa reconciliação apressada constitui uma grave indecência e um insulto às vítimas”. Quanto dura o processo de perdoar? Ninguém sabe. Mas sabemos que não é imediato. É preciso avaliar muitas coisas, pensar razões e dá-las ao coração para que decida.

O perdão só se justifica quando existe rancor ou ódio. Sem essas emoções negativas, o perdão sobra ou não tem sentido.

O ofensor deve se arrepender para que haja perdão? Não acredito. O arrependimento facilita o perdão, sem sombra de dúvida, mas não é uma condição necessária e suficiente. Condicionar o perdão ao arrependimento é assumir uma estrutura autoritária do perdão, é a filosofia do ter mais do que ser. Fromm afirmava que tradicionalmente o pecado foi relacionado à desobediência, e sua expiação ou perdão são o castigo. Contudo, de uma perspectiva mais humanista, o único e fundamental “pecado” é o egocentrismo. Em outras palavras: o pecado universal é tudo aquilo que afete o bem-estar humano. De acordo com ele:

Em resumo, no modo do ter, e por isso em uma estrutura autoritária, o pecado é desobediente, e se supera com o arrependimento, depois o castigo e, posteriormente, uma submissão renovada. No modo do ser, na estrutura não autoritária, o pecado é um afastamento sem solução, mas se supera com o pleno desenvolvimento da razão e do amor e com a união.

O erro se desculpa, a maldade se perdoa. “Desculpa-se o ignorante, mas perdoa-se o malvado”, diz Jankélévich. Quando não há intenção, só há tropeço. “Desculpe-me” significa “tire-me a culpa”. “Eu o desculpo” quer dizer: “Eu entendo, há atenuantes, há desculpas justificáveis, não foi sua intenção”. Mas o que acontece quando há “má vontade”, se ex professo alguém me faz mal? Cabe a desculpa ou é necessário passar para outro nível? “Se você me fez mal de propósito, só resta o perdão”. Temos a obrigação moral de perdoar? Não acredito nisso; mais que um dever é um desejo, é o foro interno que decide. O perdão, então, implica a existência de uma atitude má por parte do infrator, ou seja, mal-intencionada. O filósofo Derrida afirma que o perdão é para o “imperdoável”, para o inconcebível, para o pecado mortal, e não o venial. O perdão é para as atrocidades, para o inominável. Não preciso do perdão para processar o atraso de um amigo, mas sim para enfrentar sua traição e deslealdade, quer eu queira manter sua amizade, quer não.

Os caminhos do perdão

Minha defesa do perdão obedece mais a razões psicológicas do que espirituais ou religiosas. Do ponto de vista cognitivo, não é só um presente que dou ao infrator, que pode chegar a ser importante de uma perspectiva humanista, mas também é um presente que dou a mim mesmo, porque deixo de sofrer. Perdoar é aliviar a carga que o rancor me causa, é deixar meu coração livre para que volte a acreditar e/ou amar, é voltar ao leito natural. Parece que não existe só um caminho que conduz ao perdão. Em minha prática profissional cheguei a identificar cinco processos básicos, que muitas vezes se misturam de maneira complexa e produzem um único fenômeno indiferenciado. Com fins didáticos, vou apresentá-los separadamente.

O caminho do amor

O amor desinteressado não requer perdão para curar as feridas psicológicas, porque não abriga rancor. O que você não perdoaria a um filho? Na verdade, com eles ocorre o contrário: o esforço se concentra em não retirarmos o castigo antes do tempo, em seguir a norma, porque a sanção dói mais em nós. O amor é o antídoto principal contra o rancor e o ódio. Contudo, cabe a pergunta: é possível amar o inimigo? Vi casos em que, apesar da terrível afronta, o amor atua como uma barreira antirrancor: nada a processar, nada a analisar, só o amor que inclui o perdão; dor sem rancor. Como buscar vingança contra a pessoa amada? Infelizmente, não podemos produzir amor à vontade, nem na terapia nem em lugar nenhum. Recordo o caso de uma mulher de quase 70 anos que vivia com um filho viciado em cocaína que a maltratava e lhe tirava à força o pouco dinheiro que tinha. Apesar de minhas tentativas e de uma colega, não pudemos fazê-la enfrentá-lo e defender seus direitos. Não havia limites, não existia raiva nem indignação nela, só dor por vê-lo sofrer. O autosacrifício era tanto que em uma consulta me disse: “Veja, doutor, não perca mais tempo comigo… Minha depressão vai continuar de qualquer maneira… Se espera que eu enfrente meu filho, que o ponha na rua ou o denuncie, o louco é o senhor. Se pudesse dar a vida por ele, eu o faria… Não preciso perdoá-lo, já está perdoado de antemão…”. O amor tem o dom de oferecer um perdão antecipado e generalizado. Nunca tornei a ver minha paciente e, embora a teoria me indicasse que a assertividade era a melhor opção, eu nunca soube se deveria elogiar sua conduta ou condená-la.

O caminho da compaixão

Eu já disse que compartilhar a dor não é perdoar, mas tratei casos em que, de tanto ver o ofensor sofrer, o perdão começa a se gestar na vítima. Recordo o caso de uma jovem que durante a infância havia sofrido abuso do pai. Havia saído de casa fazia sete anos e não tornara a ter contato com ele. Contudo, as coisas mudaram quando o homem ficou doente, com um câncer linfático. De início, devido à pressão da família, foi visitá-lo de má vontade, mas, com o passar dos dias, ao ver seu sofrimento, começou a sentir pesar pelo homem. Pouco a pouco a indiferença se transformou em compaixão, e a compaixão foi amolecendo seu coração. Em suas palavras: “Não sei o que dizer… Sempre o odiei pelo que me fez, mas quando o vi sofrer tanto… Não sei, algo aconteceu comigo… Nunca falamos do passado, eu… sentia tanto pesar por ele! Não era amor, mas dó. Uns minutos antes de ele morrer trocamos um olhar, e tudo ficou claro para nós, foi como uma exalação… O ódio desapareceu… Não houve contato físico, nem despedida, só esse olhar especial. Ele se foi em paz, e eu fiquei em paz. Não sei o que aconteceu, mas dou graças a Deus”. A compaixão é uma virtude afetiva em que as razões sobram. Quando se manifesta, a dor do outro pode se transformar em perdão.

O caminho da compreensão

É o preferido dos psicólogos clínicos, mas, há muitas dúvidas a respeito dele. Perdoar é compreender? Não necessariamente. Posso conceber por que um estuprador acaba com uma criança, explicar sua conduta cientificamente, argumentar razões e atenuantes de todo o tipo e, ainda assim, sentir ódio pelo homem. Explicar um comportamento não é justificá-lo. Não perdoamos de tanto justificar, mas pode acontecer que o prejudicado, de tanto se colocar no lugar do acusado, acabe se identificando mentalmente com ele. A compreensão pode preparar o caminho para que o coração dê a virada, mas não mais. Prontidão para dar o salto. Jankélévich afirmava que, além do conhecimento, é necessário um impulso agregado, uma energia suplementar para que o perdão aconteça. Ainda assim, de tanto insistir, de tanto ir e vir pelas lembranças, de tanto tentar explicar o inexplicável, de tanto se colocar no lugar do outro, em certas ocasiões o perdão surge como um bênção, mais ou menos “compreensível”.

O caminho do desgaste

Nos três pontos anteriores, o processo estava centrado no outro: amar, compadecer-se ou compreender o infrator. Nesse caso, o caminho é mais autorreferencial. Em certas ocasiões, o desgaste gerado pelo rancor é tanto que a pessoa decide perdoar como um ato de sobrevivência: “Cansei de odiar”. Não há amor, nem compaixão, nem compreensão, só cansaço essencial que se reverte em si mesmo: odiar o ódio. É uma decisão da mente dirigida pelo organismo. O ódio cansa, faz adoecer e inclusive pode levar à loucura aquele que padece. Conheci gente que havia mais de vinte anos planejava uma vingança, e não estava na cadeia.

No caminho do desgaste, o perdão age como um mecanismo de defesa, um recurso do eu sem importar tanto o você: um presente para si mesmo, “Faço isso por mim”; “Eu o perdoo porque quero continuar vivendo”. Nunca sentiu uma aversão especial por alguém que nem sequer suspeita o que você sente? Na realidade, o perdão como processamento da informação do rancor não requer ninguém mais além da vítima que padece dele, seja justificado ou não. Inclusive, em certas ocasiões, o perdão se dirige a uma pessoa morta ou ausente, de modo que não há retroalimentação de nenhum tipo. Com ou sem arrependimento, com ou sem pedido do transgressor, o perdão sempre é um processo pessoal.

O caminho da comparação

É uma forma disfarçada de identificação. “Aquele que estiver sem pecado que atire a primeira pedra”, ensinou Jesus. Existe outra entrada para o perdão, que é a de me comparar com a pessoa que me causa o mal. E se eu parecer com o agressor? E se a auto-observação mostrar um saldo negativo? Como odiar quem se parece comigo sem odiar a mim mesmo? A comparação é um processo de compreensão, mas referente às similaridades entre o ofendido e o culpado. O eu se envolve de outra maneira. O mecanismo de identificação com o agressor não se faz pela dor, e sim pela semelhança: “Como não o perdoar, se eu teria feito o mesmo?” Modéstia, humildade, autocrítica. Não pensemos em um genocídio, e sim nesses pequenos atos de maldade que todos já cometemos alguma vez na vida. Nas palavras de Comte-Sponville:

Posso perdoar um ladrão porque roubei (livros em minha juventude). O mentiroso porque minto. O egoísta porque o sou. O covarde porque talvez eu também seja. Mas o estuprador de crianças? O torturador? Quando a falta supera a medida comum, a identificação perde sua força e inclusive sua plausibilidade.

Quando se trata de perdoar, não importa tanto o caminho quanto o resultado. Você pode escolher o eu, ou pelo menos identificar onde está parado. Ter um esquema positivo sobre o perdão implica estar disposto a não se deixar levar tão facilmente pelo ódio e tentar acabar com o rancor, se já estiver instalado. Se assumir que o perdão é um valor, se o internalizar como uma virtude, poderá cultivá-lo e se relacionar melhor e de maneira mais saudável.