Flávio Hastenreiter
De nada valeriam as mais duras experiências, as dores e as tragédias se os homens não devessem extrair delas um ensinamento (Nicola Abbagnano).
A frase acima do filósofo Nicola Abbagnano nos mostra a importância de prestarmos atenção àquilo que estamos vivenciando, sentindo, pensando, lamuriando… para, a partir disso, podermos extrair algo que nos faça crescer como ser humano.
O ponto essencial, segundo o filósofo citado, está relacionado com as necessidades buscadas pelo homem numa luta entre aquilo que ele é e aquilo que deve ser. Esse embate provoca nos conflitos, que na maioria dos casos estão relacionados com o aparentar ser algo para alguém. Conflitos que nos afetam em nossas vivências, pois fazem parte de um jogo social e, na maioria das vezes, levam ao sofrimento pelo dispendioso gasto de energia que isso requer.
A partir de Abbagnano, podemos supor que todos somos filósofos natos, no sentido da capacidade de reflexão sobre a própria vida. Mesmo Platão afirmava que “não se pode ser homem sem ser filósofo”. Mas, o filosofar cotidiano não é como viver no jardim de Epicuro, separado e a salvo das mazelas da vida, tentando se refugiar num conforto de não sofrer com as desilusões da vida. Filosofar cotidianamente é se identificar com a sua vida.
Ora, isso está diretamente relacionado com o sentido que damos à nossa vida, às nossas relações e ao mundo. Filosofar aqui não é e nem ter que ser filósofo de carteirinha. Filosofar nesse sentido quer dizer de sermos protagonistas de nossa história. De enfrentarmos o nosso rumo, se havendo com nós mesmos, com os outros e com o mundo que nos cerca.
Nesse sentido, filosofar é ter que fazer escolhas, tomar decisões, se comprometer, se apaixonar, ser nós mesmos, decepcionar e seguir em frente. Essa é a filosofia da vida. São frutos dos princípios da existência humana. Nossos princípios existenciais ou também, como podermos chamar, nossas crenças, que nos ligam ao mundo. Isso só se torna um problema quando tais princípios ou crenças são violadas.
Essa ligação com o mundo pode se referir ao modo como que estabelecemos nossas relações significativas com as pessoas. Por exemplo: um princípio básico pode estar na relação entre mãe e filha. Uma mãe que se acha inteiramente responsável por oferecer tudo que sua filha necessita. Se considerarmos essa relação mãe-filha quando criança, isso é perfeitamente compreensível pela dependência da criança nessa fase. Mas, na medida em que esse tipo de relação se mantém na vida adulta, ou seja, a mãe aos 50 anos de idade ainda se acha inteiramente responsável por uma filha com 25 anos, talvez daí possa brotar um conflito.
Mas como se dá, nesse processo, a violação dos princípios ou de uma crença, de uma “verdade”. Esta violação será estabelecida no momento em que essa mãe começa a se afastar das responsabilidades que cultivou a vida toda por esta filha e passa a pensar em si própria. A partir daí, começa a nascer um sentimento de que algo está errado, pois no seu íntimo ainda continua achando que deveria fazer tudo para a filha. Neste caso, podemos falar que um princípio foi violado, isto é, não fazer tudo para a filha lhe causa um incômodo tão grande que essa mãe “adoece”. O princípio violado poderia ser: “devo sempre estar disposta a fazer tudo por minha filha”.
E qual a relação que isso tem com a filosofia da vida cotidiana?
Num processo terapêutico, as pessoas vão aprendendo a lidar com suas violações. Vão identificando como que algumas de suas crenças são geradoras de pensamentos e comportamentos disfuncionais. Nesse sentido, vão exercitando a capacidade de filosofar sobre si mesmo, os outros e o mundo. Isso se torna um instrumento de melhor relacionamento com os outros e consigo mesmo.
A filosofia da vida oferece o ensinamento através de nossa própria história. Assim, num exercício de reflexão, podemos compreender, de forma mais apurada e mais humana, nossa trama de relações entre princípios e crenças, entre ser aquilo que se é e aquilo que deve ser.