Uma história de estupro

Andrew Solomon

Quando tinha três anos, Tina Gordon chamou a mãe de “mamãe” e foi repreendida imediatamente. “Nunca mais me chame assim”, disse Donna. “Não sou sua mãe”. “Mas como devo chamar você?”, perguntou a menina. “Me chame de Donna”, respondeu a mãe. A bisavó de Tina disse-lhe depois: “Você não tem culpa. Ela foi estuprada e teve você”. Tina não entendeu nada do que a bisavó estava dizendo. “Quando aprendi a ler, procurei no dicionário e entendi a parte da violência, mas não a parte sexual”, contou. “Durante grande parte de minha vida, me senti prejudicada.” Tina via a irmã mais velha, Corinna, dizer “mamãe” a toda hora e receber ao menos manifestações esporádicas de carinho e atenção. “Eu tinha de ter sempre em mente que era a filha postiça, por assim dizer.” O único gesto de carinho que a mãe tinha para com ela era preparar-lhe o leite quente que tomava antes de dormir. Ironicamente, o distanciamento de Tina em relação a Donna deve ter lhe proporcionado uma certa proteção contra as tendências destrutivas da mãe.

Donna tinha tido um colapso nervoso quando estava na faculdade e maltratado Tina e Corinna quando eram pequenas. Morava na Flórida quando Tina nasceu, e uma amiga ligou para sua mãe para contar que ela tivera um bebê. “Talvez seja tarde demais para a menina mais velha”, disse a amiga, “mas você precisa vir, levar estas crianças e talvez salvar o bebê.” A avó de Tina então foi buscar as meninas. As impressões digitais de Corinna apresentavam falhas porque Donna pusera as mãos dela no forno como castigo.

Tina e Corinna foram criadas no Mississippi aos cuidados da avó, bem mais carinhosa, que dava aulas de dia e fazia faxina à noite para manter a família. Donna visitou-as e disse que queria recuperar Corinna assim que estivesse curada. Não prometeu nada assim a Tina, que muito cedo desistiu de procurar sinais de aprovação da mãe e se voltou para a avó e as tias, que se mostraram muito mais confiáveis. Por isso, Tina via as atitudes hipócritas da mãe com muito mais clareza do que a irmã. “Quando víamos televisão, Corinna ficava no colo dela, mas eu ficava sozinha no chão”, disse.

Quando Tina tinha oito anos e Corinna dez, a avó, de 58 anos, morreu. Donna, perto dos quarenta, era claramente incapaz de tomar conta de ambas. Um tio-avô, que elas mal conheciam, achou que não deviam ser separadas e ofereceu-se para ficar com as duas, que então se mudaram para Connecticut. Tia Susan e tio Thomas lhes proporcionaram segurança material, mas as normas da casa eram rígidas e severas, e as meninas sentiam-se infelizes. Donna mandava pacotes de guloseimas e presentes de Natal para Corinna, mas nada para Tina. Tio Thomas disse a Donna que, se não pudesse mandar presentes para as duas irmãs, que não mandasse para nenhuma delas. Depois disso, chegaram apenas cartas: frias e formais para Tina, efusivas para Corinna, prometendo pegá-la de volta. Dois anos depois de um incêndio na casa de Connecticut, Corinna foi surpreendida tentando atear fogo na casa de novo, e foi mandada a um estabelecimento para menores infratores. Outro tio ficou com ela depois que foi solta, mas a garota queria voltar a morar com Donna, que não quis nem ouvir falar nisso, deixando Corinna arrasada. Tia Susan e tio Thomas não a queriam de volta. Assim, aos quinze anos, ela acabou morando nas ruas no Mississipi.

Tina achou triste demais ficar na casa do tio sem que Corinna pudesse estar lá e resolveu ir para um colégio interno. “Sempre tive, acho, um pouco do instinto de uma sobrevivente”, disse. Ela foi aceita em uma escola para meninas em que era uma das sete alunas negras num universo de 160. Seus tios se afastaram dela depois que foi castigada por fumar maconha. “Passei a ser conhecida como ‘a órfã’ na escola”, recordou Tina. Enquanto isso, Corinna se prostituía e usava drogas. Quando Tina entrou para a Universidade de Nova York, Corinna contraiu aids. “Donna me procurou para falar mal de minha irmã”, lembrou Tina. “Eu disse: ‘Entendo perfeitamente por que ela fez certas escolhas. Outras pessoas tiveram um papel importante nisso’. Donna perguntou: ‘Que outras pessoas’. Respondi: ‘Você e outras pessoas’. Foi o fim da tentativa dela de se aproximar de mim.” As irmãs, no entanto, mantiveram-se em contato, e Tina visitou Corinna várias vezes em seu último ano de vida, quando ela tinha 23 anos.

“Independentemente do que Donna tivesse dito ou feito, Corinna me dizia que eu devia me aproximar dela, perdoá-la”, disse Tina. “Como eu sabia que aquilo representava muito para Corinna, liguei para Donna e lhe pedi que ligasse para a minha irmã, dissesse que gostava dela e que rezava por ela – só para se aproximar dela antes que morresse. Donna disse: ‘Acho que não consigo fazer isso”. Depois, acrescentou: ‘Sei que nem sempre tomei as melhores decisões, mas se eu puder fazer alguma coisa para compensar, diga-me o que é’. Respondi: ‘Ligue para Corinna, tudo está perdoado e esquecido’. Ela disse: ‘Ouvi dizer que ela está se prostituindo e que estava usando drogas’. Respondi: ‘Em primeiro lugar, você não sabe se é verdade e, em segundo, que importância tem isso agora? Ela está morrendo. Você não tem de ligar para falar sobre a vida dela, ou sobre o que ela fez. Seria importantíssimo que você ligasse e dissesse que está rezando por ela, pensando nela. Alguma coisa, qualquer coisa’. Ela repetiu: ‘Não sei se consigo fazer isso’. E não fez”.

Tina ingressou na escola de direito da Universidade Columbia e, à medida que começou ter sucesso, Donna passou a procurá-la. Perguntou se seria convidada para assistir à sua formatura, aprovada com louvor. Tina respondeu: “Faz anos que não falo com você, e da última vez fiz um pedido que você não atendeu. Por que você agora que fazer parte da minha vida?”.

Tina tornou-se defensora pública. Tendo sofrido injustiças desde o nascimento, encontrou consolo defendendo outras pessoas. Quando a conheci, estava grávida de sete meses. Imaginei que ela pudesse ter medo de ser mãe. “Apesar de tudo o que aconteceu, sinto-me afortunada de diversas maneiras, abençoada mesmo”, disse. “Minha avó soube nos dar muito amor. Mesmo eu tendo estado com ela durante oito anos apenas, ela deixou uma marca forte.” Tina estava noiva de um homem cuja família afetuosa lhe dava todo apoio, “o oposto da minha”. Seu noivo é carinhoso por natureza, “e às vezes, de repente, digo a ele: ‘Você não precisa me tocar a cada vez que entra no quarto.’ Ele sabe o quanto fui ferida.” Tina fez um grande esforço para construir uma vida que não renegue seu passado. “Não sei o que aconteceu com Donna quando fui concebida”, disse ela, “mas aquela maldição seguiu seu curso e vai acabar aqui.” Descansou a mão sobre a barriga como se mostrasse que o amor, tantas vezes rejeitado, tinha enfim encontrado seu objeto.

Fragmento do livro: Longe da árvore: pais, filhos e a busca da identidade. De Andrew Solomon. Companhia das Letras, 2013. p.585-587.

Flávio Hastenreiter
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