15 set Transtorno bipolar é uma doença crônica e requer tratamento contínuo
Problema transforma a vida em uma corda bamba que oscila entre fases de mania e depressão e exige tratamento constante
Ao mesmo tempo, assustadora e empolgante. Uma vida poderosa e que desliza na trajetória de um foguete, mas que também se aproxima da letalidade. Entender os contornos do transtorno de humor bipolar é compreender as fronteiras que mais parecem uma corda bamba e que permeiam o cotidiano de quem sofre com a doença.
Winston Churchill, Vincent van Gogh, Ernest Hemingway, Virginia Woolf, Kurt Cobain. Pintavam, compunham e escreviam deleites. Retomada de registros sobre essas personalidades demonstra que eram pessoas com transtorno bipolar. Mas não porque fossem gênios em diferentes habilidades.
Abuso de álcool e drogas, corte de uma orelha e suicídios mostram que não há charme nessa doença psiquiátrica, que afeta não apenas pessoas de talento, mas de 8% a 10% da população mundial — proporção que leva em consideração os casos mais graves e os mais leves.
— A pessoa tem mesmo a sensação de que está mais inteligente, mais criativa, fazendo mais coisas, mas isso é muito subjetivo. Ela dimensiona de modo errado no momento sintomático, de mania, e começa muitos projetos, sem terminar. Ela pode, de fato, executar mais, o problema é a qualidade disso. Vemos isso no Schubert (compositor austríaco), por exemplo. Percebemos que, nessas fases, a produção aumenta, mas não são as obras de maior qualidade — explica Doris Hupfeld Moreno, psiquiatra e pesquisadora do Grupo de Doenças Afetivas do Instituto de Psiquiatria do Hospital de Clínicas da USP.
No livro Simplesmente Bipolar (Editora Zahar, 2015), o psicanalista inglês Darian Leader cita o escritor escocês Brian Adams, que resumiu suas curvas de mania em outra obra sobre o assunto e questionou a propaganda da doença: “Adams pergunta por que essas listas (de famosos bipolares) se concentram, invariavelmente, nos nomes daqueles que contribuíram para a cultura, e não nos dos que a prejudicaram”.
Se tratado, Van Gogh talvez tivesse vivido por mais tempo. Mais de suas obras teriam ficado para a posteridade. Doença crônica, o transtorno de humor bipolar prejudica a vida do paciente no trabalho, nos relacionamentos afetivos e na escola, e até mesmo causa declínio cognitivo se não for acompanhado por tratamento médico.
O transtorno de humor bipolar é uma doença da qual ainda não se sabe muito sobre as causas e não há exames que possam comprovar o diagnóstico. Conhecida pela alternância entre fases de mania e depressão, a enfermidade apresenta um rol de sintomas e nuances que não se restringem à oscilação de humor e que tornam o diagnóstico mais complicado. No Brasil, uma pessoa com o problema demora, em média, seis anos para descobrir que sofre com a doença.
Dois são os tipos em que se divide o transtorno: no tipo 1, o paciente apresenta episódios de mania, que pode se manifestar como psicose e, no tipo 2, menos grave, apresenta hipomania — a pessoa fica acelerada, dorme mal, tem exaltação de humor. Quem é diagnosticado com o primeiro também pode apresentar episódios de hipomania, mas, para isso, precisa ter tido ao menos um registro de mania ao longo da vida. As duas formas trazem algumas dificuldades para o diagnóstico.
— O tipo 1 pode ser confundido com doenças como a esquizofrenia, já o 2 com depressão. Cada um tem os seus desafios — explica o psiquiatra Flávio Kapczinski, professor titular da Faculdade de Medicina da UFRGS e coordenador do Programa de Tratamento do Transtorno de Humor Bipolar do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
Kapczinski também estuda as bases biológicas do transtorno e relata que os avanços mais atuais sobre a doença são sobre o que é chamado neuroprogressão do quadro do paciente:
— Em um grupo que temos no Clínicas e em outras pesquisas, mostrou-se que, quando a pessoa tem mais de 10 episódios da doença, há uma tendência de diminuição de volume de certas áreas do cérebro, as pré-frontais, como o hipocampo, responsável pela memória. Mas isso não ocorre com todos. Alguns exames, particularmente a ressonância magnética, é que ajudam a fazer essa distinção.
Por isso a importância da adesão ao tratamento, que ajuda a evitar os episódios de mania ou hipomania e depressão.
— Até pouco tempo atrás não se considerava o transtorno bipolar uma doença que causasse danos cerebrais. Hoje já se sabe que pode deixar uma sequela — reitera a psiquiatra Helena Maria Calil, ex-presidente da Associação Brasileira de Amigos, Familiares e Portadores de Transtornos Afetivos (Abrata) e com longa atuação na área.
Para Doris Hupfeld Moreno, psiquiatra e pesquisadora do Grupo de Doenças Afetivas do Instituto de Psiquiatria do Hospital de Clínicas da USP, todo paciente para o tratamento ao menos uma vez na vida, o que faz do conhecimento do transtorno algo essencial para as pessoas:
— Para todas as doenças crônicas, a adesão é um problema. Por isso, faz parte do tratamento entender os sintomas. Todos param o tratamento alguma vez. Cada um precisa “apanhar” da doença, para, aos poucos, aprender a se tratar. É um processo.
Assim como em outras doenças mentais, o preconceito atua sobre as dificuldades de procurar ajuda.
— O estigma ainda é muito grande no Brasil. Alastra-se o mito de que todo mundo é bipolar, mas 90% não são. Vira até adjetivo. Isso apenas acentua o preconceito. E, quando alguém fala que tem transtorno bipolar, as outras pessoas se afastam. Mas quem tem, quando bem tratado, não aparenta o transtorno — completa Doris.
Por isso também que o nome mudou de psicose maníaco-depressiva para o atual, conta o psiquiatra José Alberto Del Porto:
— O termo psicose é muito carregado de estigma, e nem sempre o transtorno bipolar se configura por ele. Temos formas mais leves que se caracterizam mais por exaltação do humor, sem ter delírios, que é uma marca da psicose.
Tratamento
Para ficar bem, o paciente de transtorno de humor bipolar precisa se conscientizar de que, depois do diagnóstico, não deve mais abandonar a medicação e, também, fazer mudanças no estilo de vida. A doença tem forte componente genético — nos casos em que um familiar de primeiro grau tem o transtorno, aumenta-se de 1% para 10% os riscos de ter a doença —, mas também pode ser influenciada por muitos fatores ambientais. Sono desregulado, estresse, uso de drogas e abuso de álcool podem ajudar a desencadear crises.
— O que a gente trabalha com os pacientes é que o estilo de vida tem de sair do sedentarismo e se aproximar muito do atlético, como se fosse se preparar para uma competição, com uma dieta regrada, horários regulados, trabalho regular — diz Flávio.
A família pode ajudar no diagnóstico porque será quem contribui nas informações do histórico da pessoa. Mas também tem papel importante no acompanhamento do tratamento.
— Em primeira instância, vem o medicamento, mas, em geral, associações de familiares conseguem cumprir uma parte que nosso sistema de saúde não cumpre. Elas ajudam a pessoa a conviver melhor com a sua doença. Para que a aceite melhor, por meio de palestras psicoeducacionais e grupos de autoajuda — complementa Helena.
Crianças e adolescentes
A maioria dos sintomas de transtorno bipolar já ocorre na infância e na adolescência, um período em que as primeiras manifestações da doença podem se apresentar ao mesmo tempo em que outros transtornos aparecem, como déficit de atenção, por exemplo. Mas, às vezes, é somente na fase adulta que se dá o diagnóstico.
— Quando conversamos com um adulto bipolar, muitas vezes descobrimos que os sintomas começaram por volta dos 14 ou 15 anos — explica a psiquiatra de crianças e adolescentes do Hospital de Clínicas de Porto Alegre Silzá Tramontina.
Além disso, quando o adolescente apresenta irritabilidade, os pais podem tomar como “algo da adolescência”, quando, na verdade, esse já pode ser um sintoma das fases de mania ou hipomania, ressalta Doris Hupfeld Moreno, da USP:
— Confunde-se, mas talvez não seja. Normalmente, quem percebe são os pares, colegas de escola, porque esses adolescentes (com transtorno bipolar) são os que, frequentemente, praticam ou sofrem bullying.
Em um diagnóstico completo, os sintomas são muito semelhantes aos de um adulto, mas com algumas particularidades.
— A sexualidade, por exemplo, aparece de um jeito diferente. A criança pode querer tirar a roupa na sala de aula — afirma Silzá.
Outra diferença aparece nos períodos das fases em que a doença se apresenta. Em adultos, é preciso uma semana de sintomas de mania, por exemplo, para caracterizar a doença. Para os pequenos, pode ser algo que varia bastante mesmo no decorrer de um dia.
A especialista ainda ressalta que, mesmo que pareça haver um aumento nos casos, é uma prevalência baixa:
— Hoje, vemos muito diagnóstico em cima disso. Mas precisamos lembrar que é raro. Quando começa a se falar demais disso, as pessoas ficam muito alertas. Diversas crianças são diagnosticadas por outros profissionais, que desconhecem as peculiaridades de quando a doença se apresenta nessa faixa etária. Temos de ter cuidado, porque é um diagnóstico muito sério.
Pesquisa realizada pelo Instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos e publicada na revista científica Archives of General Psychiatry mostrou que, após mais de 10 mil entrevistas com adolescentes entre 13 e 18 anos, descobriu-se que uma média de 2,5% desses jovens teve episódios de mania e de depressão nos últimos 12 meses e preencheu os critérios para o diagnóstico do transtorno.
Ainda que não haja um estudo em grande escala sobre a prevalência da bipolaridade na população infantil, estudiosos estimam que ela atinja até 2% de crianças e adolescentes ao redor do mundo.
Sintomas nessa fase da vida
– Apresentar muita mudança de humor e aumento da irritabilidade e da energia
– Ter pouco sono e estar sempre “a milhão”
– Chutes e explosões de raiva
– Expressar-se dizendo que tem muita raiva, sem motivo aparente
– Dizer coisas horríveis para os pais
– Não ir bem na escola
Fonte: Jornal Zero Hora, 20/11/2015. Por: Maria Rita Horn
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