21 jun Esquecer para lembrar
Iván Izquierdo
Memórias só se fazem quando há certo nível de alerta ou de emoção. Podemos não nos lembrar de leis da física que aprendemos em um livro, mas guardamos por toda a vida uma poesia que nos tocou.
E se nos lembrássemos de cada segundo vivido? Seria completamente inviável, é preciso “esquecer para lembrar”, afirma o neurocientista Iván Izquierdo, autor de A arte de esquecer: cérebro, memória e esquecimento (Vieira & Lent, 2004). Há várias razões para isso. A primeira é que os mecanismos da memória se saturam. Nossa capacidade de armazenar uma quantidade de informação é finita. A vida diária exige uma seleção de memórias. “O tempo passa, eventos acontecem, e é preciso esquecer algumas coisas para dar lugar a outras”, diz.
Para ilustrar a situação, ele cita o conto Funes, o memorioso, de Jorge Luis Borges, sobre um jovem de memória prodigiosa, capaz de lembrar-se de detalhes do passado de tal forma que levava dias inteiros para recordar outros dias por completo. Nas palavras de Borges, o personagem era “incapaz de esquecer para poder pensar” –, isto é, não conseguia descartar detalhes para fazer generalizações e abstrações.
Coordenador do Centro de Memória da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e do Instituto do Cérebro, Izquierdo é um dos cientistas brasileiros mais citados na literatura especializada e um dos neurocientistas mais importantes no mundo na atualidade. Sua área de pesquisa é a memória.
É responsável pela descoberta de mecanismos moleculares da formação, evocação, manutenção e extinção de memórias e pela separação funcional entre as memórias de curta e de longa duração. Nesta entrevista à Neuroeducação, destaca que é importante que os conhecimentos sobre o funcionamento do cérebro cheguem aos educadores. É essencial que saibam, por exemplo, as idades em que ocorrem o amadurecimento de determinadas funções cerebrais para que possam ensinar os assuntos no tempo biologicamente mais adequado.
Fala, também, do papel da leitura para exercitar a memória: segundo ele, ler é a atividade intelectual que mais estimula os intrincados mecanismos da memória. Quando lemos fazemos um “inventário” de palavras que conhecemos e também de nossas memórias visuais, olfativas e assim por diante. Não por acaso, Izquierdo é autor de centenas de artigos científicos e 17 livros. Entre estes, seis obras de ficção e crônicas.
NE: Qual a diferença entre memória e aprendizado? A memória é uma “ferramenta” que permite o aprendizado ou é o aprendizado que dá origem à memória?
Izquierdo: As duas afirmativas são verdadeiras. A memória é fruto do aprendizado e pode ser utilizada, por sua vez, para outros aprendizados. Todas as memórias se originam de aprendizados – a gente “aprende memórias”. Aprendizados são derivados de experiências. O indivíduo é submetido tanto a estímulos sensoriais vindos do meio externo como a estímulos internos, como uma dor – que não deixa de ser uma experiência – ou pensamentos. Os pensamentos nada mais são do que manipulações que fazemos com nossa memória. O que pensamos em determinado momento pode se ligar de forma diferente com memórias que já temos e resultar em memórias novas.
NE: Qual o papel da emoção na formação de memórias?
Izquierdo: As memórias só se fazem quando há certo nível de alerta ou de emoção. Sem isso não se forma a memória. E aquela de que a gente mais lembra é a que tem mais alerta e mais emoção. Por exemplo, todos os adultos lembram com quem estavam e o que faziam no momento em que souberam da morte de Ayrton Senna. Ou detalhes relacionados a momentos marcantes, como o próprio casamento ou o nascimento de um filho. Não nos lembramos de leis da física que aprendemos com pouca emoção – pois há sempre emoção em humanos, por menos que seja – em um livro, mas guardamos por toda a vida uma poesia ou um texto que nos tocou.
NE: Como as descobertas sobre a memória podem ser úteis para o trabalho do educador?
Izquierdo: De muitas maneiras, ainda não aplicadas porque os professores geralmente não as conhecem. A divulgação de neurociência no Brasil ainda não é um hábito, diferentemente do que ocorre na Europa e nos Estados Unidos. É importante que o educador saiba em que idade amadurece cada função cerebral. A capacidade para aprender mapas, por exemplo, só começa por volta dos 6 ou 7 anos. Antes disso, a criança não vai entender, pois vão lhe faltar formar várias sinapses, conexões, em locais específicos, associados a funções que permitem compreender o que é um mapa. Até 13 ou 14 anos, ainda não há muita capacidade para entender temas filosóficos, políticos, que envolvam debate de ideias. Já a capacidade de compreender e resolver problemas matemáticos aparece bastante cedo na vida. Enfim, o professor deveria estudar sobre isso para não ensinar um aluno “incapacitado”, isto é, que ainda não tem as ferramentas neurais necessárias para processar determinados dados.
NE: O que é importante que os educadores saibam sobre os alunos adolescentes?
Izquierdo: Durante a adolescência ocorrem as revoluções endócrinas, hormonais. Entre os 11 e os 13 anos e depois, até os 18 ou 19 anos, há os níveis mais altos e mais baixos de testosterona que teremos por toda a vida. Picos de alta produção do hormônio e de depressão. E isso tem um horário para ocorrer; por isso, a importância do sono.
O hormônio que induz ao sono, a melatonina, é secretado mais tarde nos adolescentes que em crianças e adultos, o que atrasa a sonolência. Por isso, é comum que sintam sono depois da meia-noite ou mais, em vez das 10 da noite, por exemplo. De manhã, o hormônio adrenocorticotrófico (ACTH) – que estimula a produção de cortisol (substância que nos permite ficar alertas) pela glândula suprarrenal – também é secretado nos adolescentes um pouco mais tarde. Daí a dificuldade que têm para acordar para ir à aula de manhã. Tanto que, nos Estados Unidos e na Europa, pediatras e educadores estão começando a recomendar que os horários das aulas sejam modificados. Para a educação primária, a manhã é um bom horário. Para os adolescentes, a tarde é melhor. É uma questão hormonal.
NE: Pode definir memória de trabalho, memória de curto prazo e memória de longo prazo? Quais fatores determinam que uma memória venha a se tornar de longo prazo?
Izquierdo: A memória de trabalho dura segundos. É utilizada para analisar cada processo sensorial dentro do contexto em que ele ocorre. Por exemplo, a última palavra que você leu na frase anterior: ela foi guardada por milissegundos para poder passar para a palavra seguinte. Foram feitas as conexões necessárias e ela desapareceu da memória. Memórias de curta duração duram minutos ou poucas horas – é a que se usa para manter uma conversa ou para acompanhar a narrativa de um livro. Finalmente, há as memórias de longa duração. Elas se constroem ao longo de três a seis horas após um aprendizado e dependem de uma série de processos bioquímicos, modulados por vários neurotransmissores, em células localizadas em estruturas específicas do cérebro. A emoção pode interferir em todas as três, mas é essencial para formar as memórias de longa duração.
NE: Qual a relação entre os mecanismos da atenção e os da memória?
Izquierdo: Sem atenção não há memória, simplesmente. Sem prestar atenção a algo, não podemos fazer uma memória. De todas as coisas que vemos ou ouvimos, em alguma estamos prestando atenção. Isso são coisas que depois lembraremos ou não, com as quais poderemos construir memórias. Os mecanismos da atenção já são muito bem estudados e conhecidos. Eles constituem todo um sistema cerebral diferente, separado, do da memória, mas vinculado a ela, no sentido de que tem de ser utilizado para poder fazer memórias. A maior parte das queixas de problemas de memória são problemas de atenção, que por sua vez são causados pelo estresse. Quando o indivíduo volta sua atenção para um agente estressante – uma preocupação com algo que pode acontecer, por exemplo –, isso tira sua atenção de outras coisas.
NE: Qual a importância de esquecer para o cérebro?
Izquierdo: É impossível lembrar tudo. O escritor Jorge Luis Borges tem um conto chamado Funes, o memorioso, que mostra que a memória perfeita é inviável, que é preciso haver esquecimento. Esse personagem era capaz de se lembrar de um dia inteiro de sua vida, em todos os detalhes, mas para isso precisava de outro dia inteiro, cada segundo para se lembrar de outro segundo. Não podemos levar todo esse tempo para lembrar.
O tempo passa, eventos acontecem, e é preciso esquecer algumas coisas para dar lugar a outras. Ao longo da vida, aprendemos muitas coisas inúteis ou erradas. Se as esquecemos, podemos aprender, no lugar, outras úteis e boas. Cada cérebro de cada indivíduo “escolhe” o que vai esquecer. Algumas memórias, apesar de ruins, são úteis para a sobrevivência, como as de medo. Nesse sentido, algumas lembranças podem não ser evocadas, mas é interessante para o cérebro que não sejam apagadas.
NE: Qual o impacto do envelhecimento no funcionamento da memória?
Izquierdo: Temos mais memórias a cada dia que passa. Quanto mais velhos, mais memórias. Apesar da idade, todos nós somos hoje mais do que ontem. Aprendemos coisas, apagamos algumas, perdemos outras. O que muda é a velocidade com que as memórias são construídas. Há mais lentidão. Leva-se mais tempo para fazer e para evocar memórias, mas elas continuam sendo feitas. Quando isso não ocorre, é porque há alguma doença degenerativa, como o Alzheimer, que é o tipo mais comum de demência em pessoas de idade avançada, cuja causa não é esclarecida. Sabe-se que neurônios vão morrendo progressivamente e isso afeta as capacidades mentais, entre elas a memória. A palavra “demência” é “de” (do grego, “falta de”) mais “mência” (“mente”): “falta a mente”. Como não sabemos o que causa a demência, não há cura nem prevenção. O Alzheimer costuma se desenvolver entre os 50 e 80 anos, dificilmente depois dos 80 – é a única boa notícia. Nesse caso, a pessoa não se lembra de coisas como ir ao banheiro, usar um elevador, por exemplo. Quando esse tipo de memória se perde, é porque há uma doença.
NE: Como a leitura ajuda a manter uma boa memória?
Izquierdo: Das atividades do ser humano, a que mais colabora com a memória é a leitura, muito mais que qualquer outra. A leitura envolve um exercício simultâneo de múltiplos tipos de memória: visual, de palavras, linguística etc. Uma palavra nova, ou combinação de letras que soe como uma palavra, nos leva a fazer um inventário gigantesco, letra por letra, de todas as palavras que conhecemos. Da mesma maneira, é feito um inventário de memórias visuais e olfativas. Um nome, por exemplo, José, pode evocar, por alguma particularidade do texto, a imagem de um entre os muitos Josés que se conheceu na vida. O mesmo ocorre com a menção da palavra “árvore”, por exemplo. Não há atividade intelectual que se compare com a leitura, porque ela utiliza vários tipos de função ao mesmo tempo. Tanto que as duas profissões em que o Alzheimer começa a manifestar seus sintomas mais tardiamente são professor e ator, que exigem, ambas, muita leitura. Isso foi constatado em estudos que correlacionaram profissão, idade, memória e doenças neurológicas.
NE: Hoje podemos contar com a tecnologia – sites de busca e a possibilidade de armazenar uma quantidade volumosa de dados digitalmente. Como isso afeta nossa memória?
Izquierdo: O Google e toda a tecnologia informática ajudam muito. Eles aumentam a quantidade de dados que podemos acessar e a velocidade para fazê-lo. Permitem-nos acessar rapidamente uma informação que antigamente demandaria anos para conseguir. Por exemplo, seria preciso viajar ao Vaticano, encontrar ali uma enciclopédia específica do século 11 na qual constaria a origem de determinada palavra. Hoje podemos encontrar essa palavra no Google em segundos.
Fonte: NEUROEDUCAÇÃO, 23/11/2015. Entrevista com Ivan Izquierdo | Edição 4, por Fernanda Teixeira Ribeiro.